28/01/2010

Parecer do Ministro Marco Aurélio Mello sobre feriado 20.

O ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF), Sepúlveda
Pertence, defende que o 3° Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3)
é fiel à Constituição brasileira e à tarefa expressa nela de
constituir uma sociedade livre, justa e solidária. Em entrevista
concedida por email à Carta Maior, Sepúlveda Pertence analisa a
polêmica e as reações que sugiram contra o plano. Ele critica a
ignorância de quem não leu o plano e o “desconhecimento da verdade de
que a liberdade e a igualdade formais do liberalismo clássico valem
muito pouco, se não se efetivam os pressupostos substanciais mínimos
da dignidade da pessoa e, portanto, da fruição por todos dos direitos
humanos”. E aponta “o propósito, mal dissimulado, de fazer da objeção
global ao plano uma bandeira da campanha eleitoral que se avizinha”.
Carta Maior: Qual sua avaliação sobre toda essa polêmica em torno do
Programa Nacional de Direitos Humanos e da proposta da Comissão de
Verdade?
Sepúlveda Pertence: Na base das críticas ao 3º Plano Nacional de
Direitos Humanos - o PNDH–3 - está um cipoal que entrelaça galhos e
raízes desconexas. Elas partem da ignorância de quem não leu o Plano e
do desconhecimento da verdade – estabelecida há quase dois séculos –
de que a liberdade e a igualdade formais do liberalismo clássico valem
muito pouco, se não se efetivam os pressupostos substanciais mínimos
da dignidade da pessoa humana e, portanto, da fruição por todos dos
direitos humanos. A essa ignorância – quando não se servem
propositadamente dela – se tem somado para aviventar atoarda contra o
Plano, desde a manifestação legítima de divergências a algumas de suas
propostas e metas - assim, a da Igreja, a respeito da
descriminalização do aborto – os temores de segmentos das Forças
Armadas, na questão da Lei de Anistia de 1979 – , e a voz poderosa dos
interesses e privilégios a preservar contra qualquer ameaça, ainda que
remota, de trazê-los à agenda da discussão nacional.
Tudo isso, sem considerar o propósito, mal dissimulado, de fazer da
objeção global ao Plano uma bandeira da campanha eleitoral que se
avizinha. Aí, fingindo ignorar que o PHDC–3 retoma e reagita, em
grande parte – malgrado, às vezes, com estilo menos cauteloso –, as
diretrizes, metas e propostas do Plano anterior, editado no governo do
Presidente Fernando Henrique, e justamente creditado a Jose Gregori,
figura admirável de dedicação, coragem, altivez e coerência na luta
pelos direitos humanos no Brasil.
Desse modo, a crítica que se poderia fazer ao PNDH-3 – e no plano da
estratégia política –, é a de sua abrangência, deveras ambiciosa.
Nesse sentido, a censura do brilhante jornalista Willian Waack no seu
programa de televisão, do qual participei, ao lado de Gregori e de
Bolívar Lamonnier a de que o Plano, de tão amplo, pretenderia ser uma
nova constituição do Pais. O dito é inteligente e espirituoso. Mas não
é exato.
Ao contrário, o Plano é fiel à Constituição. Não apenas ao que dela já
se implementou, mas principalmente, ao arrojado projeto de um Brasil
futuro, que nela se delineou, e que falta muito para realizar.
Afinal, foi a Constituição que erigiu a tarefa de “constituir uma
sociedade livre e justa e solidária” em objetivo fundamental da
República. Objetivo no sentido do qual ela própria, a Constituição, se
empenhou nas generosas declarações de direito individuais e coletivos.
E para a consecução do qual o texto da Constituição se estendeu em
capítulos e capítulos de aldazes inovações, a exemplo daqueles em se
subdividia o Titulo VIII – Da Ordem Social.

O PNDH-3, como o Plano que o antecedeu, é um esforço admirável de
sistematizar propostas no rumo da concretização do programa
constitucional de uma sociedade futura- “justa, livre e solidária”.
Lido sem preconceito, é claro que se sujeita a críticas e objeções
pontuais. Nunca, porém, à reação global e desenfreada – às vezes,
histérica – de que tem sido alvo, e que só os interesses atemorizados
explicam.

Carta Maior: O que esse debate indica a respeito do atual estágio da
democracia no Brasil?

Sepúlveda Pertence: A democracia se fortalece na razão direta da
capacidade, que a sua prática demonstre, de solver conflitos.
A polêmica suscitada por um simples Plano, sem nenhuma eficácia
jurídica, só antecipa os conflitos reais de idéias e de interesses a
enfrentar no futuro, quando algumas das propostas nele apenas
esboçadas – e contra a maioria das quais nem a reação mais emperdenida
ousa manifestar-se –, se converterem em projetos concretos de
legislação ou de ação governamental. Vale, assim, como advertência das
dificuldades a vencer.
Carta Maior: Diante da reação manifestada por alguns setores da
sociedade, quais são as chances de avanços no pais do debate sobre os
direitos humanos? O que pode ser feito, na sua avaliação, para superar
essa resistência?

Sepúlveda Pertence: Nos pontos em que a resistência se funda em
preconceitos, a evolução da cultura social se encarregará de
superá-los. Desde, é claro, que preservada e ampliada a liberdade para
desmontá-los.
Mais árdua é a caminhada para vencer interesses e privilégios
estabelecidos, em particular, os que comandam as empresas de
comunicação de massa.

O que resta é confiar em que, passo a passo, a diminuição da pobreza
gere a difusão e o aprofundamento da consciência da cidadania, e esta,
a organização da maioria explorada pelos privilégios arraigados por
séculos de brutal desigualdade. Eu não verei essas transformações, mas
sou otimista, e creio que os meus netos as viverão.
Carta Maior: Qual sua opinião sobre a “acusação” de revanchismo,
levantada pelos adversários da proposta de criação de uma Comissão da
Verdade para avaliar fatos ocorridos durante a ditadura?
Sepúlveda Pertence: Para cuidar do tema da pergunta, é preciso, de
início, desfazer a confusão -, difundida largamente por veículos da
grande imprensa -, entre ela – a proposta, desenvolvida no PNDH-3, de
criação da Comissão Nacional da Verdade, destinada, não a “avaliar”,
mas, sim à reconstituição histórica dos anos de chumbo – e a suposta
pretensão de rever os termos da concessão da anistia pela Lei 6.683,
de 1979, de modo a excluir do seu alcance os abusos criminosos
cometidos na repressão, aos crimes políticos dos adversários da
ditadura militar, conforme a hodienta Lei de Segurança Nacional.

É no mínimo curioso – para não cogitar de distorção propositada da
informação ao público – que o PNDH–3 não contém proposta alguma, e
sequer sugere, a tal revisão da Lei de Anistia de 1979.

A única alusão à matéria está na referência à argüição pela Ordem dos
Advogados perante o Supremo Tribunal, visando à declaração de que a
tortura, os homicídios e outros crimes da repressão aos presos
políticos não foram beneficiados por aquela Lei da Anistia (PNDH–3:
Eixo Orientador VI: Direto à Memória e à Verdade): sobre o mérito da
questão, o Plano não emite juízo; ao contrário, ao enumerar o rol de
competências sugerido para a Comissão Nacional de Verdade, nele inclui
a de “colaborar com todas as instâncias do Poder Público para a
apuração de violações de Direitos Humanos, observadas as disposições
da Lei n° 6.683”, isto é, a Lei de Anistia de 1979.

Quanto a idéia e às linhas gerais da proposta da Comissão Nacional da
Verdade, minha opinião é decididamente favorável: viabilizar a
reconstituição histórica daqueles tempos é um imperativo da dignidade
nacional.

Para propiciá-la às gerações de hoje e de manhã, é necessário,
descobrir e escancarar os arquivos, estejam onde estiverem, seja quem
for que os detenha.

Passado um quarto de século da eleição de Tancredo Neves, e da
retomada do processo democrático, divisar “revanchismo” nesse esforço
de desvelar os segredos ainda remanescentes da historia das décadas
anteriores seria animar o ressurgimento das “vivandeiras de quartel”,
a que se referiu com desprezo o Marechal Castello Branco.
Outra coisa é compreender as feridas ainda não cicatrizadas dos que
padeceram a tortura institucionalizada, ou da perda de entes queridos,
muitos dos quais ainda jazem nos sepulcros clandestinos: o mínimo a
reconhecer-lhes é o direito a verdade.
Ainda guardo certo constrangimento de externar opiniões sobre questões
pendentes no Supremo Tribunal, que integrei por quase duas décadas. E
em termos profissionais, me tenho recusado terminante e freqüentemente
a fazê-lo, na observância da interpretação mais estrita do triênio da
quarentena prescrita pela Reforma Judiciária.
Fui no entanto, modesto participe e testemunha privilegiada da luta
pela anistia.
Relator, no Conselho Federal, da manifestação unânime da OAB sobre o
projeto de lei da anistia - reivindicação pioneira da Ordem – afinal
extraído do governo do General Figueiredo, nada tenho a alterar no
parecer que então submeti aos meus pares

No projeto, havia um ponto inegociável pelo Governo: o § 1° do art.
1°, que, definindo, com amplitude heterodoxa, o que se considerariam
crimes conexos aos crimes políticos, tinha o sentido indisfarçável de
fazer compreender, no alcance da anistia, os delitos de qualquer
natureza cometidos nos “porões do regime” - , como então se dizia –
pelos agentes civis e militares da repressão.

Meu parecer reconheceu abertamente que esse era o significado
inequívoco do dispositivo. E sem alimentar esperanças vãs de que
pudesse ele ser eliminado pelo Congresso, concentrava a impugnação ao
projeto governamental no § 2° do art. 1°, que excluia da anistia os já
condenados por atos de violência contra o regime autoritário.
A circunstância me transformou em assessor informal, na companhia de
Raphael de Almeida Magalhães, do ícone da campanha da anistia, o
indomável Senador Teotônio Vilela. Teotônio foi um tipo singular
daqueles tempos, que a incurável amnésia histórica dos Brasileiros
começa a esquecer.

Acompanhei, por isso, cada passo da tramitação legislativa do projeto,
pois Teotônio presidiu a comissão especial que o discutiu.

É expressivo recordar que, no curso de todo processo legislativo – que
constituiu um marco incomum de intenso debate parlamentar sobre um
projeto dos governos militares – , nenhuma voz se tenha levantado para
pôr em dúvida a interpretação de que o art.1º, § 1º, se aprovado, como
foi, implicava a anistia da tortura praticada e dos assassínios
perpetrados por servidores públicos, sobre o manto da imunidade de
fato do regime de arbítrio. O que houve foram propostas de emenda -
não muitas, porque de antemão condenado à derrota sumária – para
excluir da anistia os torturadores e os assassinos da repressão
desenfreada.

É que – na linha do parecer que redigira, e que a Ordem, sem
discrepância, aprovara –, também no Congresso Nacional, a batalha
efetivamente se concentrou na ampliação da anistia, de modo a retirar
do projeto governamental, a execrável regra de exclusão dos já
condenados por ações violentas de oposição à ditadura. Exclusão tão
mais odiosa na medida em que – contrariando o caráter objetivo do
conceito de anistia – discriminava entre agentes do mesmo fato,
conforme já estivessem ou não condenados.
A orientação de Teotônio – que Raphael e eu municiávamos – foi
espargir emendas para todos os gostos, até identificar uma, de
aprovação viável.
A eleita – pelo conteúdo e pela respeitabilidade do subscritor, o
Deputado Djalma Marinho – um ex–udenista que continuou fiel ao
discurso libertário da UDN: nela além de suprimir a odiosa regra de
exclusão do §2º, ampliava-se o raio de compreensão do § 1º, de modo a
tornar indiscutível que a anistia – malgrado beneficiasse os
torturadores também alcançaria que a linguagem oficial rotulava de
“terroristas”, já condenados ou não.
A Emenda Djalma Marinho – sustentada pelo discurso candente de
Teotônio – contra toda força ainda esmagadora do governo autoritário
–, dividiu literalmente a Câmara dos Deputados: foi rejeitada por 206
contra 202 votos!

A derrota sofrida no processo legislativo se converteu em vitória,
vinda de onde menos se esperava: à base do princípio da igualdade, o
Superior Tribunal Militar estendeu aos já condenados a anistia
concedida aos acusados, mas ainda não julgados, dos mesmos crimes
políticos .
Desculpem–me pelo tom de antecipadas “memórias póstumas” deste depoimento.
Se não pude evitá-lo, é por que a minha convicção jurídica continua a
mesma do parecer apresentado à Ordem, em 1979: não obstante toda nossa
repulsa à tortura estatal, os torturadores foram, sim, anistiados pela
lei de 1979.

E lei de anistia é essencialmente irreversível, porque implica, na
lição dos mestres, tornar não criminosos atos criminosos ao tempo de
sua prática. E, por isso, sua eficácia jurídica se exaure e se faz
definitiva, no momento mesmo em que entra em vigor.
É certo que a anistia se restringe a elidir caracterização penal do
fato. Resta íntegra, quando se refere à ação de agentes públicos, a
responsabilidade patrimonial do Estado pelos danos causados aos
cidadãos. Mas essa, a responsabilidade civil – cujos efeitos a
prescrição quinquenal poderia extinguir – as leis editadas sob o
governo Fernando Henrique reassumiu.
Li e reli , com a veneração intelectual e o respeito pessoal por seu
redator , o amigo Fábio Konder Comparato, a petição da OAB de hoje, de
retratação da posição assumida em 1979. Mas dela não me convenci.
Não superei a impressão inicial de que a maestria do autor não logrou
livrar a tese do pecado do anacronismo: ela pretende reler, à luz da
Constituição de hoje, que fez da tortura crime “insusceptível de graça
e anistia”, e de convenções internacionais que ditam a sua
imprescritibilidade, a inequívoca interpretação de uma lei de 1979,
editada sob a égide do autoritarismo da Carta de 1969, outorgada pela
junta militar que assaltara o Poder. Para aceitar a tese, de minha
parte, teria de repudiar convicções acendradas.
Por outro lado, hoje, é cômodo tachar de “posição imediatista e visão
curta sobre direitos humanos” – como está em importante revista da
semana o parecer que – submeti à OAB, em 1979, e que o Conselho
Federal acolheu por unanimidade: afinal, hoje, não se tem presos
políticos a libertar, nem processos a trancar, preocupações inadiáveis
para os que então lutávamos pela anistia. E o crítico feroz de agora
sequer fora escorraçado dos quadros da magistratura que - é justo
dizê-lo – exerceu com brilho e dignidade.
“E la nave và”...

Nenhum comentário:

Postar um comentário