01/03/2010

Rainha por um dia

Por Jaqueline Lima Santos*

Eu, mulher preta... nasci na Bahia, meus pais vieram para São Paulo quando eu ainda era criança. Fomos morar em um bairro de periferia na zona sul, e assim como nós, ali haviam pessoas de diferentes regiões do país que migraram a procura de uma vida melhor e viviam em centenas de casas amontoadas. O saneamento passava por alguns lugares, o asfalto também, mas era comum andar em ruas com esgoto a céu aberto, ver casas de madeiras sendo levadas em dias de chuva, e algumas vezes corpos no chão, e para complementar este cenário eu e meus amigos e amigas brincávamos nas ruas depois do horário de escola. Nas ruas encontrávamos nossas atividades extra-escolares.
Ah, esqueci de me apresentar! Meu nome é Jamile, hoje resolvi contar a minha história de mulher preta, isso mesmo que você acabou de ler: MULHER PRETA! Eu já fui moreninha, morena, cor de jambo, parda, mulata, marrom bombom, mas hoje eu sei bem o que eu sou.
Quando era criança tinha que acordar bem cedo para ir a escola, e quando chegava adorava brincar na rua, eu brincava de tudo: de boneca, esconde-esconde, futebol, rouba bandeira, e a minha preferida era polícia e ladrão. Quando dava umas 18h00 a gente via aquele monte de cara preta apontando na esquina da rua, eram nossas mães chegando de seus trabalhos. A maioria dos meus amigos não tinham pais, e a chefe de família era uma mulher preta. Elas chegavam, colocavam a gente pra dentro de casa e cumpríamos o restante do ritual diário: tomar banho, jantar, arrumar as coisas e ir dormir.
Quando eu entrava no banheiro a primeira coisa que fazia era olhar no espelho, e lembro-me que por ficar tarde inteira no sol meus cabelos crespos ficavam queimados, logo a parte de cima ficava um pouco mais clara. Eu sempre me dirigia a minha mãe dizendo que estava ficando loira, e isso me dava mais vontade de viver o dia seguinte para que meu cabelo queimasse ao sol, quem sabe um dia eu ficaria loira de verdade. Quanto mais ficava no sol mais a minha pele escurecia, mas o fato do cabelo ficar claro me fazia crer que um dia eu poderia ser loira, como a Eliana, a Angélica, a Xuxa, as Pakitas e tantas outras referências que a televisão me colocava quando ainda era criança.
Eu sempre aprendi a ter Fé, e as pessoas diziam que nós deveríamos usar a Fé para alcançar as coisas boas para nossas vidas. Ao mesmo tempo na escola, na televisão, nas revistas, e em tantos outros meios de comunicação me diziam que o bom era ser branco, então eu usava a minha Fé acreditando que um dia assim poderia ser e logo não teria mais problema como rejeição, preconceitos, piadinhas e frustrações diversas.
Na escola tinha eleição da menina mais bonita da sala, e eu e minhas amigas pretinhas, todas com os cabelos bem trançados pelas nossas mães que acordavam cedo para fazê-las antes de sairmos, nunca fomos eleitas e sempre ficávamos no fundo da sala. Sempre quando havia alguma coisa que tínhamos que fazer par com um menino da sala de aula ficávamos sozinhas, as mais pretinhas de nós eram masculinizadas e muitas vezes tinha que fazer o papel do menininho, como na festa junina, festa na qual nunca poderíamos ser as noivinhas, papel principal da quadrilha.
Sozinhas e rejeitadas desde criança, nos descobríamos mulher de uma forma muito cruel. Lembro-me que já na adolescência ficávamos horas no ritual de mutilação de nossos corpos, quantas vezes queimei minha cabela com aquele maldito pente quente, o mesmo pente que me deixou quase careca um dia. Parecia que para nos sentirmos mais mulher as tranças deveriam ser abandonadas, o alisamento nos deixava mais próxima daquele tipo ideal. Uma certa vez a Luanda, uma grande amiga minha, ficou horas na frente do espelho arrumando os cabelos, e quando chegou na escola um menino branco jogou água em sua cabeça para desmanchar o alisamento, aquilo foi tão humilhante para ela que nem pensou duas vezes, socou a cara daquele moleque, e sabe o que aconteceu? ela foi expulsa da escola, afinal a culpa era dela. Essa minha amiga nunca mais voltou para a escola, e hoje é faxineira, o que me faz pensar no tanto de pessoas que frente a indignação do racismo não tiveram seus direitos reconhecidos e foram obrigadas a abandonar os ambientes educacionais. A escola, ainda hoje, não sabe lhe dar com esse tipo de situação.
Foi na adolescência nosso corpo começou a ganhar forma, e ao andar nas ruas muitas pessoas olhavam para os nossos corpos e não para os nosso rostos, e sempre escutávamos: Que mulata gostosa! Nossa que morena!, era assim que as pessoas estavam acostumadas a olhar para nós, como objetos sexuais. Eramos chamadas de tudo, menos de mulheres negras.
Na vida amorosa nenhuma de nós tínhamos companheiros de fato como nossas amigas brancas, sempre eramos a segunda opção, mas eramos as mulheres gostosas. Era conveniente ficar com a gente, menos namorar. Mesmo os homens negros que também eram vítimas do racismo sempre preferiam as mulheres brancas, por elas faziam tudo, e para nós isso só seria possível se tivéssemos algum diferencial a oferecer para eles.
Com o tempo comecei a perceber que lembrava muitas coisas de minha infância, e que eu e minhas amigas pretas sempre tínhamos algo em comum, e isso não era por acaso.
Ainda na adolescência comecei a trabalhar, dava um duro danado pois pretendia ter condições melhores de vida para estudar. Acordava cedo, fazia mais do que eu deveria em minha jornada, mas eu continuava sendo uma mulher preta e não era tão fácil ser promovida como foi para algumas amigas brancas com as quais eu trabalhava, aliás, elas conseguiam sempre as melhores vagas.
O tempo que sobrava eu tentava me divertir, afinal era muito nova. Foi nesse período que comecei a frequentar os ensaios da escola de samba da comunidade. Eu sambava, sambava, sambava, e foi nos Enredos que eu descobri um pouco da história negra do nosso país. Um dia fui convidada a ser rainha da bateria da escola da minha comunidade, uau, estava achando tudo aquilo o máximo e aceitei. Os anos foram se passando e eu continuei sendo a rainha da bateria, eu amava a minha escola de samba, mas conforme passava o tempo comecei a perceber que quando chega o carnaval a violência em que eu e minhas amigas pretas fomos submetidas desde a nossa infância era reforçada, estrangeiros de todos os cantos, burgueses dos jardins, de pinheiros, do morumbi e dos bairros ricos do Brasil saem nas ruas a procura de uma mulata gostosa, mas não são essas que procuram para casar.
O carnaval, uma das minhas maiores paixões, é palco de uma das grandes contradições raciais do nosso país, e embora eu seja apaixonada por esse ritual festivo, foi através dele que o tempo me explicou o que é ser mulher negra aqui no Brasil. Comecei a perceber que enquanto mulher, a mulher branca era a que reinava em todos os espaços e em todos os lugares, e nós mulheres negras? Olhei pra minha quebrada e o que somos? Somos as chefes de nossas famílias, somos sozinhas, temos os piores empregos e carregamos o peso das desigualdades de raça e gênero, foi ai que consegui ligar toda a história e me descobri como mulher preta. Descobri que o carnaval me tornava por um dia Rainha, e o resto do ano escrava.
É como o conto da Cinderela, mas ainda não fomos libertadas das amarras do racismo e do sexismo, e o carnaval acaba por consolidar nossa imagem enquanto meros objetos sexuais excluídas das relações de poder.
Quando eu conto essa minha história para outras mulheres pretas percebo que temos muito em comum.
Eu ainda vivo o carnaval, amo o carnaval. Mas precisamos consolidar uma política para além da afirmação das nossas identidades, o que também é importante, mas que mexa nas estruturas e relações de poder.
Bom carnaval para todas e todos, e que nas nossas próximas festas tradicionais possamos mudar a forma como é vista a mulher negra no mundo.
*Jaqueline Lima Santos, 23 anos, é militante do Movimento Negro Unificado, da Associação Mulheres de ODUN e do Fórum de HIP HOP do interior, e estudante de Mestrado em Ciências Sociais/ Antropologia. Contato: santos.jaquelinelima@gmail.com

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