20/03/2010

O aipim ou a raiz do movimento anticotas

O aipim ou a raiz do movimento anticotas
No Brasil escravocrata (refiro-me, agora, aos séculos 18 e 19) a piedade, a compaixão e a comiseração do branco manifestada tão insistentemente e com tanta convicção no dia-a-dia era uma piedade seletiva e racista; excluía, de plano, o negro e os mulatos.
Rezava-se e pedia-se a intervenção divina para quase tudo, para as almas, para a família, para o sucesso de negócios e negociatas, para os bens terrenos e celestes, para as safras agrícolas, para a saúde dos brancos, para as conquistas amorosas e até sexuais – menos para o escravo.
“No século 17 e mesmo no 18 não houve senhor branco, por mais indolente, que se furtasse ao sagrado esforço de rezar ajoelhado diante dos nichos: às vezes rezas sem fim tiradas por negros e mulatos. O terço, a coroa de Cristo, as ladainhas. Saltava-se das redes para rezar nos oratórios: era uma obrigação. Andava-se de rosário na mão, bentos, relicários, patuás, Santo Antônios pendurados no pescoço; todo o material necessário às devoções e às rezas.” [...] “Dentro de casa rezava-se de manhã, à hora das refeições, ao meio-dia; e de noite, no quarto dos santos – os escravos acompanhavam os brancos no terço e na salve-rainha”. [...] “Ao jantar, diz-nos um cronista que o patriarca benzia a mesa e cada qual deitava farinha no prato em forma de cruz. Outros benziam a água ou vinho fazendo antes no ar, uma cruz com o copo. No fim davam-se graças em latim:
Per haec dona et coetera data
Sit Sancta Trinitas semper laudata”
E segue Gilberto Freyre, falando de sua gente e de sua classe, deixando-os nus até a alma.
“O açúcar não teve responsabilidade tão direta pela moleza dos homens. Teve-a, porém, e grande, como causa indireta: exigindo escravos; repelindo a policultura. Exigindo escravos para ‘mãos e pés do senhor de engenho’, como disse Antonil.”[...] “Escravos que se tornaram literalmente os pés dos senhores: andando por eles, carregando-os de rede ou palanquim. E as mãos – ou pelo menos as mãos direitas; as dos senhores se vestirem, se calçarem, se abotoarem, se limparem, se catarem, se lavarem, tirarem os bichos dos pés. De um senhor de engenho pernambucano conta a tradição que não dispensava a mão do negro nem para os detalhes mais íntimos da toalete; e de ilustre titular do Império, refere von den Steinen, que uma escrava é que lhe acendia os charutos passando-os já acesos à boca do velho. Cada branco de casa-grande ficou com duas mãos esquerdas, cada negro com duas mãos direitas”.
Como não se exercitavam, ficavam com “mãos de mulher, pés de meninos”, numa vida “ociosa, mas alagada de preocupações sexuais, a vida do senhor de engenho tornou-se uma vida de rede”, conta Freyre. “Rede parada, com senhor descansando, dormindo, cochilando. Rede andando, com o senhor em viagem ou a passeio debaixo de tapete ou cortinas. Rede rangendo, com o senhor copulando dentro dela. Da rede não precisava afastar-se o escravocrata para dar as suas ordens aos negros; mandar escrever suas cartas pelo caixeiro ou capelão; jogar gamão com algum parente ou compadre. De rede viajavam quase todos – sem ânimo para montar a cavalo: deixando-se tirar de dentro de casa como geléia por uma colher. Depois do almoço, ou do jantar, era na rede que eles faziam longamente o quilo – palitando os dentes, fumando charuto, cuspindo no chão, arrotando alto, peidando, deixando-se abanar, agradar e catar piolhos por mulequinhas, coçando os pés ou a genitália; uns coçando-se por vícios; outros por doença venérea ou da pele”, arremata o implacável Gilberto Freyre.
Lendo “Casa-grande & senzala” se entende os Ali Kamel, Demétrio Magnoli, o senador do Dem, Demóstenes Torres (foto) e demais porta-vozes do sururu anticotas.
Mais: se entende porque o neoliberalismo encontrou no Brasil uma estufa tão favorável em partidos políticos, jornais, tevês, rádios, Universidades, sindicatos patronais, e no imaginário de parcela da classe média.
Os cachorros não tem história, os homens sempre têm história, e uma razão de ser social, porque, como dizia Marx "a essência humana não é uma abstração inerente ao indivíduo singular; em sua realidade, é o conjunto das relações sociais".

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